sábado, 26 de junho de 2010

Adversidades de Junho

"Corro atrás do tempo
Vim de não sei onde (...)
Eu semeio vento na minha cidade
Vou pra rua e bebo a tempestade"
Bom conselho - Chico Buarque


O mês do meu aniversário é repleto de ventanias vespertinas e noturnas, o que me intriga bastante e, de certa forma, me conforta. Me sinto bem admirar o movimento brusco das folhas, o barulho misterioso do vento e ainda arriscar um poema no papel. Mas como não podia faltar, lá também está o medo. Tenho quase sempre a impressão de uma supestição, a suspeita de que aquilo é um presságio.
Essa madrugada, antes de dormir, o ar estava violento, mas aconchegante, de modo que tive devaneios, imaginei que alguém lá em cima estava querendo me dar os parabéns. De repente, as portas da casa começaram a bater. Ainda era apenas o vento, mas minha frágil existência atormentada pelo medo me dizia para me encolher e tentar dormir, que aquilo não era mais um parabéns, era uma espécie de aviso.
Repousei minha cabeça no travisseiro da dúvida, me enrolei com o lençol do respeito ao desconhecido e tentei descansar os olhos, vestindo-os de paz . Aos poucos fui adormecendo, no embalo desconfiável da ventania, reconhecendo que era mais um estranho encanto de Junho.

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Rosália Souza

domingo, 2 de maio de 2010

Provando do amargo


Não estou pronta para engolir nada novo, cansei de viver esquecendo, preciso mastigar minha tragédia, de cara dura. Dizem que tenho mesmo cara pra tudo, informo que a partir de ontem isso está muito pior. Sinto minha face petrificada. A boca está livre para sorrir, e até tenho feito, mas em intervalos constantes me pergunto se estou bem – a resposta é sempre não.
Os olhos não estão liberados para chorar, eu realmente estou me esforçando muito para engolir a vontade de ter vontade. Não me permito nem chorar para dentro. Estou dizendo, estou entrando numa inércia maior que meu corpo ou minha mente podem ordenar, mais majestosamente esforçada do que todas vistas ou sentidas. Ninguém me entenderá, me olharão e verão a mesma cara, apesar de estar sorrindo para fora ou estar querendo querer chorar para dentro em certos momentos. Estou degustando minha tragédia, de cara dura, parecendo um gangster silencioso de olhos semicerrados. E isso é um estado interno e externo.
Não sei se estou caindo e não me dei conta, não me sinto em movimento algum. Será que posso chegar mais abaixo? Digo, já estive bastante desesperada e agora não me sinto assim. Parece que estou apenas me conscientizando da minha tragédia de viver. Tudo aqui escrito é tão consciente, tão real e tão fiel. Não é devaneio. Dessa vez não me sinto nervosa, ansiosa, não estou chorando, me mexendo, passando a mão nos cabelos, é tudo intenso de forma neutra. Tudo que está acontecendo é que meu coração está enrijecendo, petrificando, naturalmente isso.

Rosália Souza

sábado, 17 de abril de 2010

Somando ilusões


“Em que espelho ficou perdida a minha face?”

Cecília Meireles

"Eterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundo, mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma força o resgata."

Drummond


... como é intraduzível em palavras aquele momento em que nos deliciávamos com a imagem de nossas vidas unidas, o momento em que ficamos ali, a somar nossas ilusões ¹, na frente daquele estreito espelho.

Formávamos uma espécie de junção perfeita. Tua pele morena desmanchando-se na minha parda, teus dedos completando os que faltavam das minhas mãos, nossos olhos brilhando de tão enamorados. Umas madeixas minhas cobriam meu dorso, me fazendo, de forma ilusória, parecer quase bela. Tua voz impregnando-se docemente nos meus ouvidos, ‘Formamos um lindo casal’, e eu assentindo com o sorriso satisfeito. Não lembro como eu ou tu estávamos, lembro da tua metade e da minha metade refletidas, um copo de vodka levado a boca, o ambiente a meia luz e o velho espelho estreito. Aquele foi nosso único registro fotográfico. Sem muita luz, sem câmera, mas a fixação da imagem na retina e os laços invisíveis que havia ² perduram até a eternidade do presente momento. Provavelmente são evidências que me seguirão por toda minha caminhada. Seguem docemente ao meu lado, enfeitando meu jardim de fantasias e meu acervo de memórias inesquecíveis. E junto dessas lembranças, segue a certeza da felicidade que colhi de tua presença, de teu amor e teu acanhado acalento...


¹ Passagem de ‘Dom Casmurro’ de Machado de Assis, onde o protagonista relembrava tardes com Capitu.

² Música ‘Fotografia’ de Leoni.


Rosália Souza

domingo, 3 de janeiro de 2010

Ano novo, vida velha


“O que será que será
Que dá dentro da gente e que não devia
Que desacata a gente, que é revelia

(...)

O que será que me dá
Que me queima por dentro, será que me dá
(...)

Que todos os tremores me vêm agitar
Que todos os ardores me vêm atiçar
Que todos os suores me vêm encharcar”

Chico Buarque, O que será


Ano novo, vida velha


[E viva o clichê, que antes da chatice de ser uma repetição, é uma boa verdade]


Quando parece que é impossível tomar alguma atitude, qualquer ação é tranqüilizante. Estava começando a achar que ficaria surda com aquela guerra idiota de quem tinha o som mais alto com a letra mais inútil. Sem contar na chuva fria que molhava meu corpo com intervalos irritantes. Por convenções sociais, achei que sair dali não era o melhor, apesar de desejar muito. Também não parecia muito prudente gritar com o vencedor da batalha, o que era muito cativante. Tinha que fazer algo. Tudo que consegui foi falar emburrada: vou dar uma volta.

Só tinha vontade de andar sempre em frente e que ninguém me observasse. Eu sentia uma intensa impaciência para com tudo. Andava pouco preocupada em voltar, estabelecia a frente um limite que sempre quebrava, ficando mais longe da partida e buscando tranqüilidade.

Em certo limite, que não pretendia quebrar, parei e virei à direita. Brinquei com os pés na areia molhada e suave, fazendo desenhos surrealistas com as cores negras e modorrentas. Avancei um pouco, era hora de brincar com as texturas e os estados físicos. Pequenas pedrinhas me faziam cócegas, fingindo machucar; a água salgada contornava minhas panturrilhas, como fazem com qualquer obstáculo. Senti uma força restituidora na água, me puxava sussurrando: vem para onde tens medo, aqui esquecerás tudo e todos. Mas eu não podia ir, naquele momento não sentia medo, sinceramente, já me sentia tranqüila. Diante disso, só podia ir embora. Dei três passos para trás, me despedindo, respeitosamente, da imensidão.

Mirei meu local de partida e fiz dali meu ‘novo’ destino. Não era bem o que eu queria, mas sabia que ali seria suportável a partir daquele momento. Na realidade, não era um bom lugar a retornar, o céu estava cinza somente sobre aquele local, eu sabia que a chuva voltaria. Chegando lá, eu não sabia que poderia, pontualmente, estar tão correta.

Meus primeiros passos naquela área começaram a ser molhados pela água que vinha pelo ar. Incrível como realmente era tudo mais suportável: consegui sorrir gentilmente para os pingos de água. É chata essa certeza de que as respostas estão dentro de mim. Mas é assim é que é. E, desse ofício, nenhum ser humano pode se descumprir.


Rosália Souza

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Deformações voluntárias sucessivas


Era um domingo típico: os vizinhos irritantes, sempre em vaga, para não dizer inútil, comemoração; eu sozinha, sem disposição, com as mãos atadas ao redor do meu pescoço ¹. As plantas brincavam ao vento, os objetos ao redor eram relativamente estáticos, as frutas amadureciam, tudo no seu curso natural, sem precisar de mim ou dos meus irritantes vizinhos.

Como uma transição repentina bipolar, me veio a má ideia.

De forma não muito suportável, me enxerguei no espelho, me personificando em retrato de Itabira².
Outro espelho chamou minha atenção. Um objeto metálico cortante. Olhei desconfiada, rondei com os dedos... e decidi pegá-lo! Até ali, nada feito, nada demais, nada de novo. Eu precisava finalizar o impulso por inteiro.

Desferi um golpe profundo, perfazendo metade da minha face direita. Era uma tentativa de ferir parte da beleza que já me disseram que eu tinha e, era também, uma forma de ferir a hipocrisia alheia, destruir todo o discurso-falácia dos que me diziam que eu era bela. Era também uma triagem, eu veria qual – e somente qual, pois não há uma gama diversificada de possibilidades – me diria com plena sinceridade, maestria, sensibilidade e coragem: eu tenho tanto carinho por tua face marcada ³.

A tintura vermelha escorreu-me quente, efervescente como o calor das minhas mãos neste exato momento. Era doce como uma vingança, uma vingança de mim para mim e de mim para o mundo. Na verdade, para o mundo, era um necessário quebra-pernas. Em quantas cicatrizes elas, as pessoas, fincam os olhos? Mas quantas e tantas belezas elas conhecem? Quase todas. A beleza do profundo, do obscuro, não lhes é perspicaz.

Profundidade! Era no meu corte que eu queria jogar todas elas e costurá-lo com um rude arame farpado, para que elas não tentassem fugir e para que parassem de dormir o ano inteiro.

O resultado, o qual eu pretendia atingir, do impulso não foi realizado por completo. A única profundidade que atingi foi a do meu corpo e da minha alma. Elas estão intactas, eu não feri ninguém.

Mas que bruta bobagem.

Fiquei alguns minutos ali, com as mãos ensangüentadas e meu bafo grudado no espelho, se misturando com um calmo sussurro de horror e com minha danificada face refletida.

Mas que baita bobagem!

Tudo que ficou da história foi uma enorme cicatriz. Só consegui ferir os conceitos de quem já estava como estandarte de cicatrizes. Não, não as feri, não feri a hipocrisia alheia, tais golpes não as afetam. Feri a mim mesma, feri minha inútil beleza de ser quase bela.

Hoje é segunda, daqui a um pouco sairei de casa e eu sei que, a partir de hoje, me olharão com mais estranheza que o habitual. E eu sorrirei com satisfação em reconhecer que estava certa sobre a hipocrisia de cada uma delas. E infelizmente, são espelhos. O cruel será tentar contar a infinidade de imagens refletidas.

¹ Frejat e Zélia Duncan, música Mãos Atadas.

² Drummond: “Itabira é apenas uma fotografia na parede,/ mas como dói”
³ Vinicius disse a Clarice em entrevista: “Eu tenho tanto carinho por tuas mãos queimadas”.

Rosália Souza, 04 ou 05/10/09


Título escolhido em 02/12/09, trecho da música Desequilíbrio, Eddie

ps. Foto: Moça com brinco de pérola

terça-feira, 28 de julho de 2009

Sinestesia


Até então, eu não havia planejado definição para que tipo de rosa minha vida me vestia. Foi quando avistei uma intrigante, misteriosa, poética e, meu deus, amarela! Não amarela como os raios de sol que exalam vida nas madeixas dos musos do Parnaso, mas amarela de velha, seca, uma postura murcha, esturricada mesmo dentro d’água. O que na realidade era busca de uma bela foto, tornou-se a busca do meu ser, tornou-se uma inquietante queda no abismo do meu ser.
Me encostei na janela, em busca de boa iluminação, tomei o vaso nas mãos com todo cuidado possível – afinal não poderia perder a bela foto. Acontece-me, então, inevitavelmente, a vontade de cheirar aquela rosa falsamente esguia. Senti como se estivesse resgatando um sopro de vida esquecido, minha alma parecia se fundir àquela imagem em sépia. Seu cheiro era forte em demasia, tão penetrante e instantâneo que fui capaz de ali mesmo, imersa na pouca luz daquela janela, formular toda esta poesia. Era forte e decepcionante. Tinha cheiro de mel! Uma verdadeira peça do destino, nada me enoja tanto como o gosto do cheiro do mel! E foi assim que compreendi, transpiro o que odeio.

Resgatarei o olor genuíno de uma arfante rosa rubra e forte como, ao menos um dia, julguei ser? Quem saberá? Talvez eu mesma saiba. Tenho muitas folhas e pétalas ainda a cair – por ação do cruel tempo, das chuvas que inundam meu quarto, dos grandes pisantes que destroem meu jardim -, mas tentarei sempre lembrar que logo após meu destroços caídos e arrancados pelo vento feroz das ventanias inquietas, existe também a renovação da minha fortaleza, pétalas encantadoramente marcantes, bem delineadas e penetrantemente rubras nascendo, tentarei sempre lembrar, que meu jarro vazio está sempre cheio de ar.


Rosália Souza – supostamente 28/07/09

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Essência



“Me veja assim
limpa e sem adornos,
somente contornos,
todos sem fim.

Assim me goste,
me toque,
me sinta,
me enamore.

Me veja sem luxo,
enfeites ou amores,
com expressões sem horrores.

Me sinta como sou:
apenas quente e pura
como um gole de cachaça ¹

¹ Cordel do fogo encantado – Pedra e Bala

Rosália Souza