quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Deformações voluntárias sucessivas


Era um domingo típico: os vizinhos irritantes, sempre em vaga, para não dizer inútil, comemoração; eu sozinha, sem disposição, com as mãos atadas ao redor do meu pescoço ¹. As plantas brincavam ao vento, os objetos ao redor eram relativamente estáticos, as frutas amadureciam, tudo no seu curso natural, sem precisar de mim ou dos meus irritantes vizinhos.

Como uma transição repentina bipolar, me veio a má ideia.

De forma não muito suportável, me enxerguei no espelho, me personificando em retrato de Itabira².
Outro espelho chamou minha atenção. Um objeto metálico cortante. Olhei desconfiada, rondei com os dedos... e decidi pegá-lo! Até ali, nada feito, nada demais, nada de novo. Eu precisava finalizar o impulso por inteiro.

Desferi um golpe profundo, perfazendo metade da minha face direita. Era uma tentativa de ferir parte da beleza que já me disseram que eu tinha e, era também, uma forma de ferir a hipocrisia alheia, destruir todo o discurso-falácia dos que me diziam que eu era bela. Era também uma triagem, eu veria qual – e somente qual, pois não há uma gama diversificada de possibilidades – me diria com plena sinceridade, maestria, sensibilidade e coragem: eu tenho tanto carinho por tua face marcada ³.

A tintura vermelha escorreu-me quente, efervescente como o calor das minhas mãos neste exato momento. Era doce como uma vingança, uma vingança de mim para mim e de mim para o mundo. Na verdade, para o mundo, era um necessário quebra-pernas. Em quantas cicatrizes elas, as pessoas, fincam os olhos? Mas quantas e tantas belezas elas conhecem? Quase todas. A beleza do profundo, do obscuro, não lhes é perspicaz.

Profundidade! Era no meu corte que eu queria jogar todas elas e costurá-lo com um rude arame farpado, para que elas não tentassem fugir e para que parassem de dormir o ano inteiro.

O resultado, o qual eu pretendia atingir, do impulso não foi realizado por completo. A única profundidade que atingi foi a do meu corpo e da minha alma. Elas estão intactas, eu não feri ninguém.

Mas que bruta bobagem.

Fiquei alguns minutos ali, com as mãos ensangüentadas e meu bafo grudado no espelho, se misturando com um calmo sussurro de horror e com minha danificada face refletida.

Mas que baita bobagem!

Tudo que ficou da história foi uma enorme cicatriz. Só consegui ferir os conceitos de quem já estava como estandarte de cicatrizes. Não, não as feri, não feri a hipocrisia alheia, tais golpes não as afetam. Feri a mim mesma, feri minha inútil beleza de ser quase bela.

Hoje é segunda, daqui a um pouco sairei de casa e eu sei que, a partir de hoje, me olharão com mais estranheza que o habitual. E eu sorrirei com satisfação em reconhecer que estava certa sobre a hipocrisia de cada uma delas. E infelizmente, são espelhos. O cruel será tentar contar a infinidade de imagens refletidas.

¹ Frejat e Zélia Duncan, música Mãos Atadas.

² Drummond: “Itabira é apenas uma fotografia na parede,/ mas como dói”
³ Vinicius disse a Clarice em entrevista: “Eu tenho tanto carinho por tuas mãos queimadas”.

Rosália Souza, 04 ou 05/10/09


Título escolhido em 02/12/09, trecho da música Desequilíbrio, Eddie

ps. Foto: Moça com brinco de pérola